Nem sempre o hospital esteve associado ao lugar para onde se vai para ser curado de uma doença, salvo de uma ocorrência de risco ou situação de emergência. A primeira grande mudança de paradigma da instituição hospitalar data de séculos passados. O filósofo francês Michel Foucault, na obra Microfísica do poder, capítulo “O nascimento do hospital” (2012), relata o surgimento do hospital como unidade terapêutica, de intervenção sobre a doença e o doente. Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres ou, melhor, de separação e exclusão. Nessa época, o hospital guardava a função de “morredouro”, um lugar onde morrer.
Nessa época, os profissionais dos hospitais eram religiosos e voluntários, os médicos realizavam visitas esporádicas, o local não tinha a função de curar o doente e, sim, tentar assegurar a salvação da alma no momento da morte. Dessa forma, o hospital era uma espécie de ambiente de transição entre a vida e a morte, de salvação espiritual e de isolamento dos indivíduos “perigosos” para a saúde pública. A novidade no século XVIII foi a constituição de uma medicina hospitalar, terapêutica.
Essa transformação da medicina hospitalar aconteceu para tentar “purificar” os efeitos nocivos das doenças contagiosas ou impedir a desordem econômico-social. A reforma se iniciou nos hospitais marítimos, com a criação de quarentenas para evitar a disseminação de epidemias por meio das pessoas que desembarcavam. Nesse período, também a formação do indivíduo, de sua capacidade e aptidões, passaram a ter um preço para a sociedade.
Com o surgimento do fuzil, no fim do século XVIII, os exércitos se tornam mais técnicos. Os soldados têm que aprender a manejar o novo armamento. Com isso, “o preço” de um soldado ultrapassa o de uma simples mão de obra e o custo do exército se torna um importante capítulo orçamentário de todos os países. “Quando se forma um soldado, não se pode deixá-lo morrer. Se ele morrer, deve ser em plena forma, como soldado, na batalha, e não de doença” (FOUCAULT, 2012, p. 178-9).
Com base nesse viés econômico, passou-se a curar os soldados para que eles não morressem de doença. E era necessário garantir um controle para que eles, quando curados, retornassem aos campos de batalha. Foi dessa forma que nasceu a reorganização administrativa e política no ambiente do hospital militar. A mudança ocorreu com base em uma tática chamada disciplina – técnica que implicava vigilância e monitoramento constante dos enfermos.
Foi a introdução de mecanismos disciplinares no espaço então confuso do hospital que possibilitou a prática da medicalização. As razões econômicas, o preço atribuído ao indivíduo e o desejo de evitar a propagação de epidemias foram as causas do “esquadrinhamento disciplinar” a que foram submetidos os hospitais. Mas se o poder disciplinar é confiado ao médico, isso se deve também a uma transformação no saber médico. É, portanto, no ajuste desses dois processos que se dão o deslocamento da intervenção médica e a disciplinação, que está na origem do hospital médico.
A partir do momento em que o hospital é concebido como um local terapêutico, o médico passa a ser o principal responsável pela organização hospitalar. “Constitui-se, assim, um campo documental no interior do hospital que não é somente um lugar de cura, mas também de registro, acúmulo e formação de saber.” (FOUCAULT, 2012, p. 188).
Referência: FOUCALT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012.
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